Crônicas

Homenzinho aos 14 anos

Tinha 14 anos quando terminei o ginásio e comecei a trabalhar. Por indicação do meu irmão mais velho, consegui um emprego na Delegacia da Receita Federal, que era um verdadeiro luxo para um aprendiz. Como era menor de idade, assinaram a minha carteira de trabalho como “servente”, mas a minha função era operar as máquinas de impressão. Na salinha onde eu ficava, havia uma xerox e dois mimeógrafos, um a álcool e outro a tinta, nos quais eu fazia as cópias que me pediam. Como os materiais gráficos faziam mal à saúde, eu era obrigado a tomar dois litros de leite diariamente, um pela manhã, outro à tarde. Felizmente, eu gostava e isso nunca foi um problema, pelo contrário, deve ter contribuído como fonte de cálcio.

Eu adorava trabalhar ali, sentia-me valorizado e aproveitava cada detalhe dessa nova vida. Lembro que fiquei maravilhado com as salas acarpetadas, coisa que até então eu desconhecia, pois só fora ao cinema uma única vez, ainda assim sem reparar nesse detalhe. Por isso, volta e meia eu observava o solado do meu sapato e admirava o brilho no couro. Aquilo tudo, ar condicionado, persianas, interfones, tudo era um mundo novo a espera de ser descoberto. Talvez porque eu fosse o mascote da repartição, talvez porque eu tivesse prazer em servi-las, as pessoas me tratavam com toda educação e algumas com um verdadeiro carinho, como aquelas que depois de 50 anos ainda me chamam de Vicentinho.

Um belo dia, quando meu chefe saia para almoçar com o encarregado da agência de Maringá, que de certa forma era uma autoridade, olhou para mim e de supetão me convidou para ir junto. Tímido, fiquei perplexo, todo meu sangue correu para o rosto e fui incapaz de agradecer e recusar. No trajeto, fui caminhando atrás deles, absolutamente quieto, apenas ouvindo. No Restaurante Matsuo (Rua Minas Gerais), fiquei contido enquanto eles conversavam animadamente. Para não dar vexame, comi e fiz exatamente os mesmos movimentos do meu chefe, imitando-o como um verdadeiro discípulo. Parece pouco, mas essa foi a primeira vez que eu entrei em um restaurante e até hoje fico pensando no que o levou a me convidar.

Talvez por conta da inocência daqueles meus primeiros anos, eu via naquele ambiente uma tamanha camaradagem que chegava a ser um clima familiar. Favores não eram trocados por dinheiro ou outro tipo de compensação, senão pela simples gratidão. Quando o chefe da agência de Apucarana veio transferido para Londrina, provavelmente ele estivesse em dificuldades financeiras, pois meu chefe conseguiu um caminhão emprestado com um amigo e pediu para que eu e o motorista fizéssemos a mudança, no sábado. Claro que sim!, só pela viagem já compensaria: Cambé, Rolândia, Arapongas e Apucarana, que aventura! No fim, a mudança não coube no caminhão e tivemos que fazer duas viagens, terminando o serviço altas horas da noite. Mas isso não importava, afinal, eu viajei por quatro cidades. Terminada a mudança, nada de dinheiro ou gratificação, apenas um muito obrigado e até segunda-feira.

Minha função era na salinha das máquinas copiadoras. Se não havia serviço no momento, eu treinava datilografia em uma velha máquina Walda (a-s-d-f-g) ou então lia e prestava atenção nas conversas dos adultos. Quanta coisa aprendi observando e ouvindo! Um deles atendia ao telefone com seu indefectível “Alô, fulano, como é que está essa fortaleza?“. Um outro, elegantemente me pedia que “por obséquio”, lhe comprasse “duas carteiras de St Moritz curto”. Até mesmo o delegado, que era sério e compenetrado como a autoridade máxima da repartição, ensinou-me certa vez como encher um cachimbo com tabaco cheirando a amêndoas ou chocolate: “aperte a primeira camada com dedo de moça, bem de leve, a segunda, com dedo de mulher, mais forte, e a última com dedo de homem”. Nunca fumei, mas guardei comigo o carinho daquela lição.

Era comum me pedirem serviços externos, o que eu adorava por conta da liberdade que esses momentos me proporcionavam, de comprar cigarros a pagar contas nos bancos ou buscar encomendas na Viação Garcia, eu estava sempre disposto, chovesse ou fizesse sol. Havia um casal cuja esposa esperava sua primeira filha depois de dez anos. A recomendação que eu recebi do marido, meu chefe imediato, era atender prioritariamente quaisquer vontades da esposa e, por conta disso, tantas vezes saí à procura do “Baiano do Quebra-Queixo” que estacionava a sua lambreta com a vitrine de doces embaixo da marquise do edifício Júlio Fuganti. A menina acabou nascendo durante o segundo tempo de Brasil e Iugoslávia, na Copa de 1974.

Com o passar do tempo, fui alternando em outras funções. Minha vontade era aprender, portanto, mudar de função nunca foi um problema. Pelo contrário, certa ocasião, a telefonista entrou em licença gestação. Foi quando, valendo de todo o seu talento, minha superior me chamou e me perguntou se eu ficaria ofendido em substituí-la, já que telefonista era uma função eminentemente feminina. Claro que não!, topei imediatamente e foi uma experiência magnífica operar o aparelho de PABX, fazer, receber e transferir ligações usando todos aqueles botões, chaves e fios coloridos, sentia-me muito importante. Por conta disso, mandaram-me à Embratel aprender como operar um aparelho de Telex, que era uma novidade naquela época. Quando retornei, com tudo que aprendi, tornei-me o teleimpressor oficial.

Depois disso, fui para a sessão de protocolo e controle de movimentação de processos, na qual eu diariamente lançava em fichas datilografadas toda a circulação dos documentos internos. Nessa época, chegaram uns arquivos elétricos nos quais eu apertava um determinado botão e a respectiva bandeja com as fichas parava na minha frente. Achei aquilo de uma tecnologia inacreditável! Outra vez, substitui o funcionário da expedição de malotes, coisa muito divertida, pois todos os dias chegavam e saíam vinte malotes para as agências da região, cidades que eu só conhecia pelo nome (Altônia, Iporã, Loanda) e sobre as quais eu morria de curiosidade. Com o tempo, abrindo e fechando esses malotes diários, decorei o nome de cada um dos vinte chefes das agências.

Noutra ocasião, encarregaram-me de ensinar um funcionário da agência de Maringá a operar o mimeógrafo. Fui até lá, aproveitando a viagem de um dos motoristas que seguiria até Campo Mourão e me apanharia na volta. Mas, a minha vontade de conhecer novas cidades era tamanha, que convenci o motorista a me esperar meia hora enquanto eu treinava o colega e depois iríamos a Campo Mourão. Dito e feito, foi assim que eu voltei para casa com outras tantas cidades no meu portifólio de viajante. Que realização!

Havia aqueles que eram gente boa, mas só contavam piadas e discutiam o futebol. Desses, eu aprendi muito pouco, pois nunca fui bom contador de estórias e em campo sempre fui um fiasco. Mas, havia aqueles que filosofavam nas suas conversas. Desses, eu aprendi e muito. Certa ocasião, alguns funcionários teriam de fazer uma opção para evoluir no plano de cargos e salários. Se fossem aprovados no concurso, progrediriam substancialmente, mas se não fossem, perderiam as vantagens até então acumuladas. Reinava a dúvida e a angústia diante daquela difícil decisão, quando eu ouvi uma das pessoas vaticinar: “é melhor correr o risco de dar algo errado, do que viver o resto da vida achando que teria dado certo“. Quanta sabedoria! Muitos anos depois eu fui buscar nessas palavras a força que precisei para abandonar a minha carreira na Caixa Econômica e me lançar à selva amazônica na realizar meu grande sonho.

Da minha casa até o trabalho, eram dez quarteirões, que eu vencia quatro vezes ao dia. Pela manhã, entrava às 08h00, depois vinha almoçar em casa entre 12h00 e 14h00 e, finalmente, saía às 18h00. No final do expediente, tinha que ser rápido, pois minha mãe deixava o jantar pronto, antes que eu seguisse para a escola, cursando à noite o ensino médio profissionalizante em Edificações.

Era divertido carregar uma maleta 007, esquadros, lapiseiras, canetas para papel vegetal e uma desajeitada régua T, afinal, eu e meus colegas nos sentíamos como se fossemos aprendizes de engenheiro. À época, estavam construindo a usina de Itaipú e os professores, esses sim, engenheiros, passavam-nos as notícias e novidades sobre aquela fabulosa obra. Pena não termos organizado uma excursão para testemunhar as Sete Quedas que logo desapareceriam. Pudera, éramos as pobres vítimas do salário mínimo de 1974, que nos valores de hoje, seriam apenas R$ 415,00. Mesmo assim, apesar daquele ensino profissionalizante pago, porém paupérrimo em termos de cultura básica, o que eu aprendi como desenhista de edificações acabou ajudando a me manter enquanto eu fui tentar outros sonhos maiores. Mas isso já é uma outra estória!

 

(*) Vicente Magalhães é advogado em Curitiba

 

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