Não adiantou, corri, corri, mas perdi esse trem! Hoje, 15 de janeiro de 2024, uma máquina puxando alguns vagões fez sua última viagem entre Ourinhos e Londrina, depois de 89 anos (1935-2024), o trecho foi desativado. Quando eu percebi, estava tomado daquela sensação lúgubre, um misto de tristeza e lembranças e convencimento sobre a finitude de todas as coisas. Pudera, com esse último trem foi-se embora uma parte da minha história.
Fui criado em Londrina, mas desde sempre meu pai teve um sítio contornado por essa estrada de ferro, bem em frente à pequena estação de Frei Thimóteo, a primeira depois de Jataizinho, no sentido de Ourinhos. Foi ali que passei os finais de semana da minha infância, brincando na cachoeirinha, cavalgando e convivendo com os trens que trafegavam em ambos os sentidos. A estação era pequena, mas sendo obra dos ingleses, claro, permaneceu até hoje firme e ereta, embora depredada. A ponte sobre o Córrego da Floresta, mais rígida ainda, contempla uma plaqueta informando que foi fundida em Glasgow, Escócia, em 1932.
Na direção de Ourinhos (São Paulo), eram dois trens diários. O “misto”, com vagões de carga e passageiros, saia de Londrina às 10h30 e passava pelo sítio às 11h30. Já o Ouro Verde (e depois Ouro Branco, por conta do material metálico dos vagões) era exclusivo para passageiros, saía de Londrina às 20h00 e passava por Frei Thimóteo às 21h00. No sentido contrário, vindo de Ourinhos, o Ouro Verde apitava às 10h30 e chegava em Londrina às 11h30. O misto passava em Frei Thimóteo às 15h00, parando em Londrina às 16h00. Além desses, havia ainda os trens de carga, sem horário fixo. Por isso, não era incomum vermos trens cruzarem uns com os outros, um passava pela linha principal, enquanto o outro aguardava no desvio. Enquanto isso, passageiros, vendedores e curiosos circulavam como formigas.
Para vencer os 30 Km, com paradas em Ibiporã e Jataizinho, a viagem levava uma hora. De longe nós escutávamos o ruído da composição “plam-plam, plam-plam” ou aquela inconfundível buzina. Corríamos à beira da linha para sentir de perto aquela vibração. Diziam que, encostando o ouvido aos trilhos, era possível sentir o movimento do trem. Que medo, nunca senti! A locomotiva vinha firme e poderosa, era a maior máquina que eu conhecia, o chão tremia, a erva cidreira (capim limão) esvoaçava, as rodas de ferro jogavam longe as pedras que colocávamos sobre os trilhos. O maquinista sempre na janela lateral com seu indefectível quepe e distintivo da RFFSA quase sempre acenava para a criançada. Os passageiros regozijavam-se em nos ver ali tão livres, pés no chão, por vezes montados a cavalo, exibindo-nos como se fossemos cowboys. Era tanta gente vindo e indo, tanta vida e agitação, que enchia os nossos olhos.
Meu pai gostava de contar, rindo dele próprio, que comprou aquele sítio entusiasmado pela proximidade da estação. Era coerente, ele ainda não tinha automóvel e não sabia dirigir. Imaginou a possibilidade de vender lenha de eucalipto para alimentar as locomotivas. Porém, alguns meses depois que plantou as mudas, vieram as locomotivas a diesel e o seu projeto teve o mesmo destino que as marias-fumaças, foi por água abaixo. Estou falando do início da década de 1960. Aí meu pai resolveu produzir leite e manteiga para revender em Londrina. Pensou consigo, bastaria despachar os latões diariamente que o trem os traria para Londrina. Até seria uma ideia, até daria certo, se os trens não atrasassem, descarrilhassem e se os latões não fossem parar em Arapongas ou Apucarana por conta da desorganização no serviço, só retornando dias depois, com o leite todo coalhado. Era assim o trem que eu conheci.
Muitas vezes viajamos de Londrina ao sítio. Mesmo depois que meu pai adquiriu um jipe, nós, os meninos, primos, amigos, gostávamos daquela aventura. Era emocionante ficar com meio corpo para fora da janela ou das escadas de acesso, passar de um para outro vagão pisando naquelas plataformas móveis, observar os tipos humanos os mais variados, paquerar as garotas com sorrisinhos e piscadelas, ou então desviar do cobrador para não pagar a passagem. Na ponte sobre o Rio Tibagi, minha impressão era que o trem estava voando. Em Jataizinho, talvez pela proximidade com o rio, vendia-se um peixe frito dentro de um pão francês. A cabeça e o rabo do peixe ficavam para fora do pão, nunca me esqueço disso.
Quando dava a hora, vinha o garçom oferecendo o almoço. Era um tipo peculiar: calça e camisa brancas, porém imundas, usava uma espécie de tipoia na qual trazia pendurados os pratos de “sortidos” (prato feito) empilhados uns sobre os outros. O prato de baixo continha a comida, o de cima servia de tampa. Ao passageiro que quisesse almoçar, o garçom entregava o prato já destampado, recebia o dinheiro, fazia o troco e depois retirava do bolso traseiro da calça um garfo ou uma colher, ao gosto do freguês. Era esse o almoço de quem tinha poucos recursos para ir ao vagão restaurante. Isso tudo se misturava ao odor fétido do banheiro. Muitos passageiros preferiam ir ao mictório durante as paradas nas estações e não raro causavam enorme confusão e gritaria, pois o sino tocava, o trem apitava e partia.
Passado um tempo, meu pai mudou a casa para um ponto mais elevado da propriedade, de onde podíamos ver o trem serpenteando nos dois sentidos. O seu farol solitário, porém ultra potente, vinha varrendo a escuridão e puxando aquele comboio iluminado do trem de passageiros no sentido de São Paulo. Se era de dia, víamos vagões com gado, automóveis novos e madeira. Muito do aço usado na construção da usina de Itaipu passou por ali. Meu pai ficava impressionado com o tamanho das composições, sessenta, setenta vagões.
Esse trem mexia com a minha imaginação. Na minha meninice, minha perspectiva de mundo terminava ali, em Frei Thimóteo, nem mais, nem menos. Só que eu morria de curiosidade de conhecer os outros trechos, ver e desfrutar de novas curvas, serras, pontes e cidades que esse trem atravessaria. Em 1977, desatei a corda e fui estudar no Rio de Janeiro. Vindo de lá, certa vez, quis dar um sentido aventuroso à viagem e resolvi chegar a Londrina de trem.
De Barra do Piraí à Estação do Norte (Roosevelt), em São Paulo, vim pela Central do Brasil observando aquelas paisagens lindas do Vale do Paraíba, casarões e antigas fazendas de café, montanhas da Mantiqueira e cidades até então desconhecidas. Ao anoitecer, tomei a Sorocabana na Estação Júlio Prestes. Eu estudava arquitetura e fiquei maravilhado com aquele prédio que até hoje me impressiona. A locomotiva era elétrica, mas as paradas eram tantas (Osasco, Jandira, Barueri, …) que rodamos a noite toda e só chegamos a Botucatú pelas 10h00 do dia seguinte, circunstância da qual eu não me esqueço, pois o garçom passou oferecendo o almoço e gritando o nome da estação.
Em Ourinhos, descia-se de nível, era preciso fazer uma baldeação deixando o trem elétrico, que seguiria para Presidente Prudente, e embarcando no trem movido a diesel, muito mais vagaroso, principalmente por conta das curvas que chegavam a ser cômicas, de tantas que havia e que obrigavam o trem a dar voltas intermináveis pela paisagem agrícola. Em Marques dos Reis, primeira estação paranaense, podia-se tomar um outro trem para Curitiba, passando pelo chamado ramal do Norte Pioneiro, na direção de Ponta Grossa.
Segui para Londrina e, depois de Serra Morena (cujo nome oficial é Cruzeiro do Norte), pude finalmente apreciar aquela paisagem que povoou anos da minha imaginação. Pude, enfim, chegar em Frei Thimóteo pelo lado oposto, dessa vez vindo de São Paulo. Era como uma volta ao mundo, foram quase 40 horas de viagem, 18 anos de idade, uma mochila nas costas e um sonho realizado. “Pintei estrelas no muro e tive o céu ao alcance das mãos”. (H. Kolody). Foi a última vez que viajei no trecho que está sendo hoje sepultado.
(*) Vicente Magalhães é advogado em Curitiba