Quem não se lembra do filme “E o vento levou” naquela cena em que o fazendeiro Gerald O’Hara orienta sua filha: “Scarlett, a terra é a única coisa do mundo que vale o trabalho, pelo que vale lutar, pelo que vale morrer. Porque é somente o que fica”? Eu pelo menos nunca esqueci.
Quando eu me mudei para Rondônia (1983), recém formado e ávido por realizar meus sonhos, descobri que poderia concretizar ao mesmo tempo dois deles: tornar-me um advogado autônomo e independente, “dono do meu nariz”, como se diz, e ser um dia fazendeiro, a depender de esforço e economia, é claro. Da advocacia, eu vivo contando aqui e acolá, da fazenda, como começou, contarei agora.
Conforme eu fui me firmando como advogado, comecei a empregar minhas economias comprando pequenos lotes de terras rurais, isso antes mesmo de adquirir uma casa para morar, tamanha era o sonho que me movia. Havia na região um antigo assentamento do INCRA no qual os colonos estavam desistindo das terras, seja para morar na cidade, seja procurando terras mais descansadas. Interessante, os lotes eram de mais ou menos 25 hectares (10 alqueires), mas rigorosamente cortados em formato retangular, alguns chegando ao igarapé (pequeno curso d’água), outros não. Assim, conforme as minhas economias, eu comprava esse ou aquele lote que estivesse à venda. Resultado, o mapa das minhas terras parecia um tabuleiro de xadrez: um lote meu, dois do vizinho, outro meu e assim por diante. Demorou para que eu preenchesse os vazios, pois os vizinhos percebiam o meu apetite e cobravam mais caro por conta disso. Mas, como esconder a ansiedade quando se tem 26 anos?
Sempre trabalhei muito, mas, nessa época, eu exagerava. Era advogado da prefeitura, de três instituições financeiras (bancos) e de dezenas de clientes. Atuava em todas as áreas do Direito, cível, criminal, família, administrativo, legislativo, tudo. Só que isso não impediu o meu projeto rural. Ficava no escritório até entardecer e depois seguia para a fazenda. Consegui emprestados um trator e uma grade aradora o que me realizou, pois revolvi aquelas terras compactadas pelo uso prolongado e semeei novas pastagens. Eu ainda não tinha gado algum, isso só viria tempo depois.
Um certo dia, pilotando aquele imenso trator amarelo (para quem conhece, um CBT 1105), fui à propriedade de um amigo buscar a grade. A noite vinha chegando, mas o mormaço amazônico ainda era grande. Encostei o trator de ré, pulei lá de cima e vim conectar o cabeçalho da grade. Que peso, meu Deus! Vendo o meu sofrimento, o fazendeiro vizinho chegou a mim, pôs a mão no meu ombro (eu ainda estava com a camisa social vindo do escritório) e naquele seu sotaque tranquilo do norte de Minas, João Nicolau Flores profetizou: “Êh, caboclo, você vai ficar rico!” Nossa, aquilo foi o tônico que me faltava, minhas forças duplicaram, ergui o cabeçalho da grade e coloquei o pino no engate. Sozinho, tarde da noite, sem janta, quantas vezes eu parei o trator no canto da cerca e apagava as luzes para testemunhar as estrelas que me davam cobertura.
Por uns dois anos eu trabalhei formando a fazenda. Meus vizinhos, gente simples com quem eu sempre gostei de conversar, perguntavam intrigados: “Mas, Dr. Vicente, para que tanto capim se o senhor não tem gado?” E eu me divertia: “Calma, eu AINDA não tenho, mas um dia, terei”. À certa altura (1988), fiquei sabendo de um gado no Amazonas que estava sendo ofertado por um preço muito convidativo. Eram duzentas vacas, cem paridas e cem solteiras. Parece pouco, mas para mim, era uma quantidade enorme, tanto que eu não tinha dinheiro para aquilo tudo. Então, pensei comigo, como sempre penso: “para que andar de carro novo, quando aparece uma oportunidade?” Aquele me pareceu um grande negócio e, como se dizia naquelas bandas, “se você deixar o cavalo ir embora, não montará mais”.
Fui a Rio Branco do Acre para descobrir porque o gado estava tão barato. Era perto para os padrões amazônicos: 430 km de terra, atravessando o Rio Madeira na balsa do Abunã. Descobri a razão do preço baixo: onde o gado estava, só se chegava de avião ou a cavalo, porque as cheias do Rio Acre, onde ele desemboca no Rio Purus, afluente do Solimões, tinham ilhado a fazenda do vendedor e inundado os “campos baixos” (pastagens à beira dos rios). Por isso, ele tinha que vender e eu queria comprar. A opção seria fretar um pequeno avião até Boca do Acre, no Amazonas, onde estavam as rezes. Se o negócio se concretizasse, formar uma comitiva com cavaleiros contratados ali mesmo na região e trazer o gado tocado e caminhando pelo lodaçal da estrada, cruzando inclusive a divisa entre Amazonas e Acre.
Mas, havia ainda um outro obstáculo, pois os problemas não costumam andar sozinhos. Eu estava comprometido com uma audiência naquela semana e deveria retornar a Guajará-Mirim, sem demora. Formou-se um drama na minha consciência: se por um lado queria muito fazer o negócio, por outro, não negligenciaria meu compromisso profissional. Então, arquitetei uma solução. Fretei o tal aviãozinho e nele embarquei meu irmão caçula, que era estudante universitário e passava as férias comigo. Dei a ele todas as instruções, “Olha, você faz assim, assim e assado, verifica o tamanho das vacas, se elas têm certas características, se estão em condições de marchar 150 quilômetros e coisa e tal. Ah, se houver balança na fazenda, pese umas cinco e me passe o peso por telefone”. Não tinha como dar errado.
Com meu irmão, seguiu um vaqueiro e sua traia de montaria. Se o negócio não vingasse, eles fariam apenas um passeio sobre a Amazônia e seus grandes rios. Assim, enquanto o monomotor seguia para o Amazonas, eu voltava para Rondônia. Dirigi quase a noite toda pela BR-364 que, naquela época, não tinha um palmo de asfalto. Quem conhece a Amazônia sabe o peso daquelas chuvas torrenciais. Em alguns trechos, a estrada mais parecia um lago. Eu já estava tarimbado em dirigir naquelas situações, o segredo é entrar na lagoa pelas bordas, onde o leito é mais raso do que no meio, onde passam os caminhões. E nunca permitir que o carro pare, manter uma aceleração contínua, mas sem exageros. Outra coisa, sempre carregar uma garrafa com água para lavar os faróis pois o barro vai secando e logo não se enxergava mais a estrada.
Lá pelas dez da noite eu encostei na barranca do Rio Madeira, aquele majestoso caudal barrento logo após receber as águas do Rio Abunã, que faz a divisa com a Bolívia. Agora, com o Google, fica fácil medir a largura do rio: 1.200 metros. É o maior afluente da margem direita do Amazonas e deságua um pouco abaixo de Manaus. Recentemente foi inaugurada uma ponte. Mas, naquela época, não havia sequer uma casa, barraca ou morador naquela margem, era uma escuridão total. O único sinal de vida eram umas minúsculas luzinhas da balsa que estava na outra margem. “Demora, mas ela virá”, pensei comigo. Sentei-me no chão em frente à caminhonete, do radiador saia um bafo quente e de certa forma acolhedor, dado o adiantado da hora. Óculos embaçados pela umidade, pus-me a imaginar quanta vida se resumia naquele momento, eu e meu irmão no meio da selva amazônica, cada qual na sua empreitada. Pensei em tudo aquilo que nós estávamos realizando e na história que futuramente eu teria para contar. Tive uma grande emoção, mas medo, não. Eu adorava ler sobre JK: “poupou-me Deus o sentimento do medo”.
Apaguei todas as luzes e fiquei olhando aquele céu levemente bordado de estrelas. A chuva tinha passado e a escuridão ia aos poucos limpando o firmamento que era tão grandioso quanto a minha imaginação. O silêncio, a amplidão daquilo tudo apertava o meu coração. Procurei um papel e encontrei os restos de um embrulho atrás do banco. Fui lançando ali umas palavras que vinham aos borbotões. À forma de uma carta à minha filha Carolina, como se com ela eu estivesse conversando, externei o que aquilo tudo significava para mim, minha ambição, minha luta e minha vontade de consolidar uma existência vigorosa e, sobretudo, servir de exemplo para os meus. Talvez fosse infantil, mas era sublime. Prometi à pequena menina que um dia teríamos a terra dos meus sonhos e pensei na pequena Scarlett O’Hara ouvindo a pregação de seu pai. Foi quando a balsa chegou e pude finalmente embarcar.
Mais 200 quilômetros de terra pela frente. Incrível, entre Rio Branco e Guajará-Mirim só havia quatro pequenos povoados, Vila Nova do Mamoré, Abunã, Extrema e Nova Califórnia. Eu sentia uma sensação estranha ao passar por esses lugares no meio da noite, porque todos eles estavam com as luzes apagadas, a energia elétrica era movida a motor e desligada a partir de uma determinada hora. Uma outra coisa interessante, mas tenebrosa, era passar pelas pontes da antiga Ferrovia Madeira-Mamoré, que foram fabricadas na Inglaterra e aproveitadas pela rodovia. Os pranchões de madeira vibravam de acordo com o impacto dos pneus e as vezes se soltavam e abria-se um vão entre os dormentes da antiga ferrovia. Às vezes, sozinho na noite escura, era preciso descer e alinhá-los de acordo com o rodado do veículo. Quando cheguei em casa, o dia já amanhecia.
A audiência não foi tão importante assim, tanto que dela não me lembro mais. Mas, eu cumpri com a minha obrigação profissional e na minha vida isso sempre foi coisa séria. À tarde, como eu esperava, veio o telefonema do meu irmão, o gado correspondia ao padrão que eu lhe dissera. Autorizei-o a fechar o negócio e voltar no avião para Rio Branco. Aleluia, agora estava feito!
Para trazer a vacada até Rio Branco, a comitiva levou cinco dias (ou “marchas”, como se diz). Os peões foram muito zelosos, nenhuma rês se perdeu, nenhum bezerro arribou, nada. É interessante a dinâmica que os peões adotam. Muito cedo, antes de todos, sai um deles com os apetrechos de cozinha. Ele procurará um ponto a 10 ou 15 quilômetros, perto de um igarapé, onde fará o almoço. Enquanto isso, os demais põem os animais para marchar, conferindo a quantidade para que nenhum fique pra trás. À frente, segue o “ponteiro” com os cavalos e os burros que os peões vão revezando no uso. No meio do gado seguem outros, cuidando para que os animais não “arribem” (percam a toada do grupo e saiam da estrada). Atrás, na “culatra”, seguem dois ou três tocando os retardatários. Quando o gado passa por um local sem cercas laterais ou alguma encruzilhada, o ponteiro “afina” a boiada, acelera a sua montaria e faz com que o gado ante mais rápido. Quando se entra em um corredor, aí ele “engrossa”, estrala o seu chicote e afrouxa o passo para que o gado ande e paste ao mesmo tempo, sem correria. No final da tarde, o cozinheiro providenciará o pouso que tanto pode ser um pasto de aluguel à beira da estrada ou uma simples baixada onde haja água e calma para os animais pernoitarem. Não esqueço que o pagamento foi de um salário mínimo por dia, para que os peões rateassem entre si.
Perto de Rio Branco, aluguei um pasto e deixei que o gado descansasse uma semana para só então embarca-lo em caminhões. Meus vizinhos, aqueles que me perguntavam para que tanto pasto, surpreenderam-se quando viram toda aquela frota chegando. Que sensação maravilhosa eu senti ao ver aquele gado nas pastagens que em boa parte eu formei com as minhas próprias mãos. Ah, se entusiasmo pudesse ser engarrafado.
Orgulhoso, encomendei ao ferreiro fazer a marca que minha mulher Eliana desenhou e que eu usei não só lá, mas em Mato Grosso do Sul, em Minas Gerais e no Paraná: a silhueta da cabeça de um boi sobre o M de Magalhães. O protagonismo daquelas vacas e bezerros vencendo as adversidades do Amazonas, do Acre e de Rondônia, sob a minha inspiração, fizeram-me vencer meu próprio limite. Tinha razão Gerald O’Hara, a terra é somente o que fica. Assim como fui, um dia voltei de Rondônia. Aquelas mesmas terras agora são de outros. Não faz mal, elas são eternas e talvez estejam fazendo pelos atuais proprietários o mesmo que um dia fizeram por mim.