Crônicas

Penhora no Rio Guaporé

No início da minha advocacia (1984), morei em Costa Marques, no vale do Rio Guaporé, perto das ruínas do Forte Príncipe da Beira e na fronteira com a Bolívia. Fiquei encarregado da cobrança de uma dívida e surgiu a possibilidade de penhorar “pelas” de borracha que estavam em uma “colocação” no Seringal Colorado, ponto isolado do Rio Branco, um dos afluentes da margem brasileira do Guaporé.

Consegui um mandado judicial e o oficial de justiça me convenceu a irmos juntos. Não foi difícil, aos 24 anos eu estava ávido por uma aventura e conhecer a floresta seria a maior delas. Só para esclarecer, “pela” de borracha é aquela bola que o seringueiro faz com o látex extraído da seringueira; já uma “colocação” é a morada de um seringueiro no meio da selva, de onde ele retira o fruto do seu trabalho.

Alugamos um barco a motor, reunimos o combustível que julgamos ser suficiente para ida e volta, duas redes, um piloteiro e lá fomos nós. Na madrugada, embarcamos e subimos o Guaporé, tão imenso quanto deserto. É preciso experiência para identificar a embocadura de cada um dos afluentes porque tudo é muito plano, muito horizontal e sem outros atributos geográficos a não ser floresta e água. Valeu-nos a tarimba do nosso piloto Adonai, um típico boliviano de poucas palavras.

Lá pelo meio dia, tomamos à esquerda e entramos no Rio Branco. O nome faz-lhe justiça, águas profundas, calmas e limpas, a ponto de se poder bebê-las sem medo. Mas, com o avançar à montante, o leito do rio foi se estreitando e a mata chegando cada vez mais perto do barco. Agora, mesmo com o barulho do motor, ouvia-se claramente o grito das araras, bugios e outros animais; vez por outra algum banhado com capim nativo e jacarés caindo dos barrancos. Não cruzamos com uma viva alma. A natureza ali guardava seu estado completamente original.

Viajamos boa parte da tarde até chegarmos à colocação do seu João Monteiro, tributária do Seringal Colorado. Tudo ali se resumia a um tapiri, que era um barraco muito tosco, erguido à base de varas e coberto com folhas de palmeira. É da colocação que saem e chegam as chamadas “estradas de seringa”, que são trilhas rudimentares percorridas a cada três dias pelo seringueiro em busca do látex das árvores. Sua rotina semanal é sempre a mesma. Na segunda e na quinta-feira, percorre, corta as árvores e recolhe a seiva de uma das estradas. Na terça e na sexta-feira, faz o mesmo na segunda estrada. Na quarta e no sábado, é a vez da terceira. No domingo, descansa.

Seu João Monteiro foi de uma cortesia inigualável. Dentro das suas possibilidades, recebeu-nos com a maior fidalguia. Mostrou-nos a borracha acumulada, permitiu que a contássemos e assumiu o encargo de depositário, mesmo sem entender muito bem o que isso significava. Na verdade, ele queria mesmo é palestrar, conversar com gente humana, o que por aquelas bandas era muito raro.

Escureceu e aceitamos pernoitar ali. Divisei naquilo uma grande oportunidade de entrevistar e conhecer a vida do nosso cicerone. Ele me contou ter sido um dos “soldados da borracha”. Em 1943, recolhido na Casa de Detenção em São Paulo, acusado de um “crime de mulher”, como ele mesmo definiu o antigo crime de sedução, propuseram-lhe a comutação da pena se fosse para a Amazônia “cortar seringa”. O Brasil estava dando a sua parcela ao chamado “esforço de guerra”. Ele e outros companheiros de cela embarcaram em Santos e seguiram pela costa brasileira aportando em várias cidades, onde outros e outros rapazes iam se incorporando ao navio que os levaria à Amazônia.

Segundo seu João Monteiro, a viagem foi muito boa, bem melhor que a cadeia. Difícil foi ficar sem fumar à noite, proibição imposta pelo comandante, pois a luz da brasa dos cigarros poderia despertar os submarinos alemães, à espreita dos nossos navios.

O ingresso na Amazônia foi por Belém, depois Manaus e depois Porto Velho, atingida vários dias subindo o Rio Madeira. Daí a Guajará-Mirim, a viagem foi pelos trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. A cada porto, a cada parada, era feita uma triagem. Os seringalistas faziam suas propostas e escolhiam os mais robustos. Seu João Monteiro, que era um homem franzino, optou pelo Rio Branco, não porque o conhecesse, mas porque lhe disseram que a água limpa guardava menos malária e outras doenças.

De Guajará-Mirim, ele subiu o barrento Rio Mamoré até o aldeamento de Surpresa, foz do Guaporé e onde começam (ou terminam, para quem desce) as tão esperadas águas limpas. Como todo seringueiro, seu João Monteiro foi municiado do essencial: uma canoa de tronco de árvore, espingarda “de carregar pela boca”, munição, terçado (facão), poronga (luminária à querosene para usar sobre a cabeça), balde para recolher o látex, uma rede para dormir e os suprimentos para sobreviver: arroz, feijão, sal e enlatados. Seringueiro não tem tempo nem tradição de fazer roça. O que lhe falta, mesmo a preços aviltantes, vem buscar no “barracão”, que é a sede do seringal e o ponto de distribuição dos mantimentos e de recebimento da borracha.

A vida de seu João Monteiro, nos últimos quarenta nos, quase não teve transformações. De 1943 a 1984, quando lá estivemos, ele disse que sua rotina foi sempre a mesma, Mas, sentia-se feliz. Amasiou-se com uma índia e gerou um único filho, Jurandir, homem forte e sorridente que chegou à tardinha com a espingarda a tiracolo e um cervo (veado) nas costas, abatido a pouco no banhado. Foi o nosso jantar, carne ótima, ainda mais com aquela fome.

Meu companheiro oficial de justiça não tinha o menor constrangimento em fazer perguntas de foro íntimo e seu João Monteiro nos explicou que, logo após nascer Jurandir, pediu à companheira que não mais engravidasse, dadas as dificuldades da região, no que foi atendido com a ingestão (pela companheira) de algumas ervas que são da cultura indígena. A senhora índia não dizia palavras em português, referia-se sempre ao marido que a respondia no seu idioma. Durante todo o tempo, enquanto cozinhava, permaneceu arredia e observando seus visitantes.

A noite foi permeada de sons e sensações estranhas. Alguns pios de pássaros eram intercalados por gritos do bugio e pelo esturro da onça. Seu João Monteiro nos tranquilizou, aquele era o rugido do macho em sua viagem nupcial. Ele nos disse que jamais foi atacado por onça, mas que a viu de pertinho muitas vezes. Sequer a sucuri o incomodou, a não ser devorando seus cachorros e suas galinhas, que ele já tinha até desistido de criar. Orgulhoso, ele batia no peito para afirmar que vencera todas as doenças que mataram a maioria dos seus conhecidos, principalmente o impaludismo (malária) e a beri-beri (deficiência aguda de vitamina). Agora, não adoecia mais.

Nos quarenta anos que antecederam a nossa visita (1943-1984), Seu João Monteiro teve a mesma vida. Coletou o látex ainda antes de o sol nascer, pois do contrário o leite da árvore coalha com o calor. Quando voltava, aí pela hora do almoço, fazia fogo e defumava o material coletado para ir formando aquela bola. Chegando a um certo tamanho, iniciava outra e assim sucessivamente. No fim de certo período, como tinham um furo no meio e flutuavam, bastava passar-lhes uma corda e puxá-las com a canoa rio abaixo até o barracão. Esse trabalho todo tinha sido recentemente modificado, pois as indústrias estavam recebendo o látex mesmo coalhado, mesmo sem defumar, o que seu João Monteiro considerava uma enorme facilidade.

Amanheceu e tivemos que nos despedir. Seu João Monteiro me falou do seu orgulho em receber um doutor em sua casa, comendo da sua comida e dormindo sob o seu teto. Estávamos em 1984 e ele me perguntou se o Garrastazú ainda era o nosso presidente. Ligamos o motor do barco, fomos saindo devagar e seu João Monteiro ficou nos acenando do barranco.

À jusante do rio quase não há correnteza, mas o barco desliza melhor, inclusive fica mais leve e ágil porque já consumiu boa parte do combustível. Fizemos uma escala na Fazenda Pau d’Óleo, já no Rio Guaporé. Fomos recebidos pelo lendário Seu Almerindo, funcionário do antigo território federal encarregado daquele rincão. Pau d’Óleo era famosa pelos búfalos trazidos da Ilha de Marajó por um antigo governador. Esses animais viviam em estado de total liberdade nos enormes campos nativos, o que os tornava semi-selvagens. Por isso e por conta das cobras, todos na fazenda andavam com revólveres à cintura, coisa muito diferente.

Na grande e suspensa casa de madeira, o almoço foi tracajá (espécie de tartaruga) capturado naquele mesmo dia. Carne boa, escura, mas boa. Seu Almerindo conversou à larga, falou de todos os governadores que ele conheceu, um a um, das primeiras estradas de Rondônia, da estrada de ferro e da sua admiração pelo atual chefe do Estado, o governador Jorge Teixeira. Era tarde, trazíamos as nossas redes, como enjeitar o convite para pernoitar?

Na manhã seguinte, retomamos a viagem. Nosso estoque de gasolina era duvidoso. Por isso, Seu Almerindo nos supriu. A solidariedade é muito natural naqueles confins, onde se professa a crença “ajude o viajante porque amanhã você poderá estar na mesma situação”.

O que depois aconteceu naquele processo, eu não sei dizer. Mudei de cidade e transferi meus casos para um outro advogado. Terá seu João Monteiro se desincumbido dos deveres de depositário? Duvido. Terá o devedor surrupiado a borracha que guarnecia o processo? É provável. Disso tudo ficou algo muito mais precioso, ficou a experiência de ter conhecido um lugar único e incomparável, uma vida humana no meio daquela imensa floresta, a maior floresta do mundo. Não há tempo que seja capaz de apagar em mim essa lembrança.

Tempos depois, já em Guajará-Mirim, minha secretária anunciou que um certo senhor estava à minha espera na recepção. Fi-lo entrar, era Seu João Monteiro. Levei-o para almoçar comigo, apresentei minha família, fiz o que pude para ciceroneá-lo de forma recíproca ao que ele fez por mim. Mas, qual! Seu João Monteiro queria mesmo é tomar o barco que sairia naquela noite. Não suportava a vida urbana, ele ali era pequeno, era reduzido a apenas mais um, queria voltar à largueza do seu Rio Branco e ao abrigo do seu tapiri. Dei-lhe um abraço. Nunca mais o vi.

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