Crônicas

No Tribunal do Júri

Eu era formado há quatro anos quando assumi, em 1988, um júri muito esperado naquela pequena cidade nos confins da Amazônia, fronteira Brasil-Bolívia. Marido e mulher renderam, atiraram e mataram o amante dela, um rapaz muito popular, principalmente pelos seus dotes de exímio conquistador. E de fato minha cliente deixou-se levar por essa correnteza da paixão que transporta os corações enamorados naquele lindo passeio à vela solta antes de jogá-los no rochedo da desilusão. Se foi aquele um amor puro ou obsceno, não importa, ele a fez se sentir vinte anos mais moça e sonhar, como não sonhava há tempos. E foi assim que ela o amou verdadeiramente, confessou-o a mim, como seu advogado. Já o marido, se a amava, era aquele amor rotineiro, tranquilo e pacífico. Talvez desconfiasse da traição, mas como não via, apenas ouvia rumores, contemporizou. Ele era um militar de baixa patente e as aparências contavam muito na continuidade da sua carreira. Um escândalo era o que menos desejava. Ocorre que o destino sempre marca a sua hora. Normalmente, ao sedutor não basta o jugo da sua presa, é preciso divulgar o poder da sua arte, valorizar o seu lance, como se diz. Por isso, o escândalo daquele triângulo amoroso foi tomando corpo, ficando público, primeiro de boca em boca, depois com ares de chacota. O basta veio quando ela comprou uma arma, os três se encontraram, discutiram, ele segurou o rapaz, ela atirou. A tragédia se fez em questão de minutos!

Cheguei à tribuna completamente sozinho. O palco nunca me pareceu tão grande, imenso para alguém tão novo, tão magro, tão inexperiente. Naquela época, nem se sonhava com a internet e eu estava longe de qualquer ajuda, conselhos, professores, biblioteca, livraria. Éramos apenas eu e os meus 27 anos. Lembrei-me do advogado Evandro Lins e Silva, verdadeiro mestre do júri, que certa vez confessou a sua apreensão sempre que o juiz anunciava “com a palavra, o advogado de defesa”. No meu caso, foi algo mais do que simples apreensão, mas olhei para a frente e pensei, “hoje e aqui, darei o melhor de mim”.

Comecei esclarecendo que não permitiria intervenções da acusação. É claro que isso imediatamente gerou um bate-boca, mas isso era exatamente o que eu queria, esquentar-me o meu sangue, pois sou melhor assim. Depois, como eu havia estudado meticulosamente o processo, decorei o número das folhas onde estavam as peças principais. Então, eu coloquei aquele calhamaço de papel em cima da bancada dos jurados e enquanto eu ia discursando, pedia a um dos jurados que me fizesse o favor de abrir o processo na folha tal e tal, pois ali estava o documento sobre o qual eu falava. A acusação protestava, claro, mas o objetivo estava cumprido, os jurados estavam sempre atentos. Outra estratégia, eu passei a maior parte do tempo discursando com a arma do crime em punho. Ora, ninguém passa desapercebido com um revólver na mão. Além disso, como se tratasse de um pequeno revólver calibre 22, cromado, que mais parecia uma arma de brinquedo, aos poucos eu fui desmistificando os jurados daquela repulsa natural a uma arma de fogo. Minha intenção, que talvez tenha prevalecido, era convencê-los de que ninguém que tenha realmente a intenção de matar usa uma miniatura daquelas. O crime, portanto, não fora urdido previamente, mas fruto das circunstâncias que tomaram conta da discussão, o que levou à tragédia.

Usei cada minuto das minhas três horas e depois voltei à réplica para mais uma hora. Ao final, na exaustão da madrugada, recebi um bilhete de um radialista amigo informando que abriu o microfone da sua emissora para que seus ouvintes acompanhassem o julgamento. Foi a maior glória! Na sala secreta, os quesitos foram sendo escrutinados. A uma certa altura, por cima dos óculos, o juiz discretamente piscou-me um dos olhos. Era a senha do meu sucesso e uma cortesia vinda de um experimentado juiz para um novato da advocacia. Voltamos ao plenário, o resultado, a absolvição por 7 votos a 0 para ele e por 6 votos a 1 para ela. A emoção tomou conta e, enquanto ela chorava as suas lágrimas pelo vexame social que vivera, ele, homem de grande conformação física, levantou-me no ar como se exibisse um troféu. “Vencemos, doutor, vencemos!”

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